Todo mundo, mesmo quem, como eu, mal sabe mover um cavalo num tabuleiro, já ouviu falar daquela história de programas de computadores derrotando gênios do xadrez. Nos idos da década de 1990, um programa desenvolvido pela IBM, chamado Deep Blue, derrotou o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov em uma partida que foi um ponto de virada no mundo do xadrez. Desde então, o xadrez tem sido uma das áreas que mais explora a questão da inteligência artificial e o confronto dela contra os humanos.

(Estamos falando da década de 1990, quando os modelos de IA eram muito menos sofisticados do que aqueles que agora estamos vendo surgir a cada instante, em um jogo com variáveis limitadas e um processo de tomada de decisões baseado em estatística.)

Anos mais tarde, contra todas as probabilidades, testemunhamos que a máquina não derrotou o humano. Em vez disso, eles se uniram, dando origem ao chamado Xadrez Centauro, onde jogadores humanos colaboram com as máquinas para analisar dados e elaborar estratégias. Essa colaboração entre o humano e a máquina deu origem a um novo modelo, extraordinariamente eficaz. E hoje estamos vendo que os benefícios dessa abordagem homem – máquina podem se estender muito além do tabuleiro de xadrez.

Desde o final de 2022, temos observado, um tanto alarmados, a entrada nas máquinas em um domínio que, por todas as suas infinitas possibilidades e combinações possíveis, parecia demasiado humano.  

Tradução e Inteligência Artificial

Com todo o recente buzz em torno da inteligência artificial, é inevitável pensar nas possíveis aplicações de uma sinergia entre homem e máquina em outras áreas, especialmente na linguagem – que foi o grande código quebrado pelos modelos de linguagem como o GPT-3 e seus predecessores. A tradução, considerada uma das áreas mais em risco de extinção pela inteligência artificial, pode estar se transformando em algo completamente novo. Nesse novo cenário, o tradutor desempenha um papel híbrido de linguista, programador, leitor e tomador de decisões. Isso, é claro, complementado pela sua capacidade de interpretar resultados (textuais, no caso da tradução) e pelo seu conhecimento sobre o que constitui uma tradução de qualidade.

Assim como no Xadrez Centauro, onde o jogador humano traz intuição, criatividade e empatia para o jogo, na tradução, o tradutor humano traz nuances culturais e contextuais que uma máquina pode não capturar plenamente. A inteligência artificial traz força bruta, a capacidade de processar e digitar grandes volumes de texto em questão de segundos.

(E, assim como no xadrez, uma ferramenta poderosa nas mãos de um jogador não habilidoso não vai trazer resultados extraordinários…)

O que torna essa colaboração mais interessante é a capacidade de troca de informações bidirecionais, pois estamos falando de modelos de linguagem conversacionais. Ao contrário dos métodos atuais de pós-edição de tradução de máquina (a famigerada sigla MTPE), nesse modelo de Tradução Centauro, os tradutores humanos podem estabelecer comandos prévios (prompts) para definir aspectos como tom de voz, público-alvo e outras informações estratégicas relevantes para o texto. Eles podem incorporar a base de conhecimento gigantesca dos modelos de linguagem neural para orientar decisões tradutórias — podem até se beneficiar dos modelos de múltiplas traduções para escolher e combinar possibilidades, aprimorando a tradução final. E a cereja do bolo: os tradutores podem fazer um feedback em tempo real, conversar com a máquina para fazer ajustes contínuos ao longo do processo.

O Desempenho Humano na Tradução

Em essência, a lição que podemos tirar do Xadrez Centauro é que, quando humanos e máquinas trabalham juntos, eles podem alcançar níveis de desempenho que seriam inatingíveis de outra forma. E por “desempenho” aqui entendemos tanto qualidade quanto quantidade. Em um cenário de explosão de conteúdo que precisa ser localizado rapidamente para vários mercados, exige-se que os prestadores de serviços linguísticos processem e traduzam uma quantidade de texto cada vez maior, e mais rápido. Isso só é possível se formos auxiliados por máquinas. Ênfase no auxiliados. É possível que restará ao tradutor o trabalho de aplicar a sua criatividade, seu conhecimento específico em áreas de especialização e a compreensão de nuances culturais. Isso, se combinado à velocidade e à eficiência da IA, nos permitirá atender à demanda por rapidez e elevar a qualidade das traduções a um novo patamar.

Portanto, não há motivo para que os tradutores temam esse cenário. Essa colaboração pode beneficiar o trabalho de tradutores que estejam dispostos a se adaptar, a mudar de papel e deixar de lado o apego às próprias escolhas. O ganho é a eficiência, que, por sua vez, melhora a qualidade das traduções, tornando-as significativamente superiores às traduções feitas exclusivamente por máquinas. Sem a capacidade criativa e interpretativa, as máquinas podem realizar tarefas repetitivas, mecânicas e tediosas, como digitar grandes volumes de palavras rapidamente, enquanto os humanos podem se concentrar na parte pensante da tradução, adicionando estilo e sutileza que elevam a tradução a um nível excepcional.

O Caminho para o futuro da tradução

Assim como o Xadrez Centauro revolucionou o mundo do xadrez, a simbiose entre humanos e máquinas parece ser o futuro do mercado da tradução. Não se trata de, deuzolivre, substituir tradutores, mas de capacitá-los a atingir níveis de excelência que antes eram difíceis de imaginar – e, assim, obrigá-los a aprender novas habilidades, se familiarizar com novas tecnologias e saber transitar nesse meio que nos obriga a entender conceitos como aprendizado de máquina, redes neurais e tantos outros.

Na história, o medo da substituição do homem pela máquina sempre existiu, mas a verdadeira inovação geralmente é aquela que une essas forças. Após o momento de ruptura, elas encontram uma maneira de coexistir em harmonia. Sigamos explorando as possibilidades da IA na tradução para buscar resultados mais precisos, eficientes e humanamente sensíveis, tudo isso graças à parceria entre tradutores humanos e máquinas inteligentes. O futuro da tradução é, sem dúvida, meio homem e meio máquina.

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