Sempre que um livro traduzido chega por correio da editora, é um misto de alegria e apreensão. Alegria de ver o trabalho materializado, editado, encapado, brilhando mundo afora. E apreensão para ver o que aconteceu com a tradução nas etapas seguintes do processo editorial. Será que as minhas escolhas mais ousadas ficaram ali? Será que consegui convencer a equipe editorial das minhas decisões tradutórias? Será que dei muito trabalho para os preparadores, revisores e editores? Quanto do texto precisou ser mexido para chegar na versão final, certamente excelente – ainda mais quando estamos falando de Faro Editorial?

O Enfeitiçados (F.T. Lukes) chegou e fui logo abrindo apressada. Eu lembrava bem de alguns pontos que foram verdadeiros quebra-cabeças na tradução e queria ver com que as soluções que eu propus tinham se saído. O primeiro deles era nada mais, nada menos do que a palavra que abria o livro. Em inglês: Hex-A-gone. O nome da empresa prestadora de serviços de feitiçaria (!) da personagem principal. Um trocadilho medonho que, foneticamente, lembra hexágono, mas brinca com a junção das palavras hex (feitiço) e gone (acabado). Muito adequada para uma empresa cujo objeto social é desfazer feitiços. A solução em português que propus? Desfeitização. Um trocadilho igualmente infame brincando com “feitiço” e com a sonoridade da palavra “dedetização”. E não é que colou? Lá estava, Desfeitização, abrindo o livro.

Este caso era ainda mais especial porque trazia uma camada a mais de desafio. Personagens não binários, que demandavam o uso de uma linguagem e pronomes neutros ao longo de todo o livro. E esse é um aspecto da língua com o qual, como sociedade, como leitores e como produtores de texto, estamos nos habituando. Toda construção é mais atenta, mais consciente. É fácil deslizar, esquecer, deixar passar detalhes. Mas, no papel, parece estar funcionando. O que fica agora é a curiosidade de como o texto será recebido pelos leitores – que, se tudo der certo mesmo, nem vão perceber que há um tradutor ali por trás.


Adriana Krainski, tradutora, assina a tradução de Enfeitiçados (F.T. Lukes) – Faro Editorial (2023).

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